Youth of May e o Massacre de Gwangju

Drama coreano lançado em maio de 2021 conta a tragédia história de um amor nos tempos da ditadura coreana. O que realmente aconteceu em maio de 1980 em Gwangju? Conheça a história de ums dos principais protestos que ocorreu durante o governo de Chun Doo Hwan e como ele foi um dos grandes responsáveis pela volta da democracia no país.

Bem vindos ao blog. Este tem como objetivo trazer referências históricas sobre o recente drama Youth of May e como ele transmitiu alguns acontecimentos da história da redemocratização da Coreia. Dito isto, o blog VAI CONTER ALGUNS SPOILERS sobre o drama mas acredito que isso não implica de forma alguma o/a leitor(a) que ainda não assistiu e deseja assistir. Garanto que após a leitura do blog e os relatos históricos aqui mostrados vão até deixar a experiência de assistir o dorama mais elucidativa e realística. Espero que acompanhem pois vai ser um tanto extenso. Abaixo deixo o sumário.

Sumário

Poster Oficial

Youth Of May

Data de transmissão: 3 de Maio a 8 de Junho de 2021

Episódios: 12
Emissora: KBS2
Diretor: Song Min Yeop
Escritor: Lee Kang

Durante os tempos difíceis de Maio de 1980 em Gwangju, Myung Hee, uma jovem enfermeira que sonha em estudar medicina fora do país, apaixona-se por Hee Tae, recém formado em medicina no qual era o primeiro de sua classe. Juntos vivem momentos únicos e turbulentos em suas vidas causado por brigas familiares e interesses político-econômicos da época.

Introdução

Acho interessante explicar o motivo do blog. Sempre tive interesse por história, seja ela qual for. Mas meu interesse pela história da redemocratização da Coreia e a década de 1980 foram ganhando espaço nos últimos anos por conta de vários filmes e doramas que foram lançando. Depois de terminar Youth of May, prometi para mim que procuraria entender mais sobre esses tempos e o blog é mera consequência. Acabei por fazê-lo com intuito de proporcionar esclarecimentos e conhecimento a mim e aqui estou apenas repassando o que aprendi. Conhecimento é poder e compartilhar é preciso.





-- Na foto: 1) Park Chung Hee e militares. 2) Chang Do Yong e Park Chun Hee em 20/05/1961

Foto explicada acima.

Contextualização

(1960-1980)

Para entender os acontecimentos do dorama é preciso voltar algumas décadas. Para quem assistiu, é fácil identificar elementos ditatoriais que aparecem. Protestos acontecendo, repressão policial, militares torturando civis. Tudo isso aconteceu de verdade, mas como chegou nessa situação?

Antes do ano de 1960, a Coreia do Sul estava sob o comando de Rhee Syngman (Segunda República) num governo cheio de escândalos de corrupção e má gestão econômica, causando diversos protestos instigados por estudantes. Em Abril de 1961, Rhee foi forçado a exilar-se e quem assumiu interinamente o comando foi Yun Bo Seon. Seu governo não durou muito por diversos fatores sendo o principal a desconfiança e falta de concordância entre os oficiais do governo. Com isso, o ambiente estava propício para que o plano de Park Chung Hee, à época, Major General, e um dos mais influentes miliares do país, fosse adiantado.

Em 16 de Maio de 1961, Park Chung Hee liderou um golpe militar formando uma nova administração, sob o comando, nominalmente, do então Chefe do Estado Major Chang Do Yong, com a criação do Conselho Supremo para Reconstrução Nacional. Era o fim da Segunda República e o começo da Terceira República. A justificativa para o golpe militar defendida pelo Chung Hee e seus coronéis foi realizar a tarefa de desenvolvimento nacional e a urgente necessidade de salvaguardar a nação de políticos ineficazes.

Logo após o golpe, antes da criação do Conselho, os militares emitiram uma nota com seis pontos de ação do novo governo, sendo os de interesse do blog:

1. Opor-se ao comunismo e reorganizar e fortalecer os valores anti-comunistas

4. Solucionar rapidamente a miséria das massas, que estão reduzidas ao desespero, e concentram-se na construção de uma economia nacional independente

5. Aumentar a capacidade nacional de alcançar a unificação nacional, objetivo unânime de todos os coreanos, e opor-se ao comunismo

Outra ação rápida que foi criada após o golpe foi a KCIA (Agência Central de Inteligência Coreana) com o objetivo de aconselhar Park Chung Hee e coletar inteligência sobre forças anti-golpe e pró-comunistas.

Com o lema de rápido crescrimento econômico, a economia nos primeiros anos do governo apresentou sinais positivos. A taxa de crescimento geral do PIB coreano durante o período entre 1963 e 1970 foi em média de 9,6% ao ano, e a renda per capita aumentou de $100 em 1963 para $243 em 1970. A taxa de desemprego diminuiu de 8,6% em 1963 para 4,4% em 1970. Isso fez com que a popularidade de Park aumentasse e foi assim que conseguiu ser reeleito nas eleições de 1967. Importante notar que essa foi a segunda eleição desde o golpe, que dizia-se 'República', mas a predominância militar nos gabinetes não deixava duvida de quem realmente tinha o poder. Porém, o crescimento não durou muito. Logo os efeitos da estratégia econômica de Park foram aparecendo. A desigualdade econômica foi aumentando em todos os setores, regiões e entre classes, contruibuindo para o sentimento de injusta da população e o crescimento do partido de oposição liderado por Kim Dae Jung.

Foto onde um dos personagens olha para um quadro de uma fábrica. Com a legenda: "Vista Aérea para Farmacêutica Changhwa"

Nessas cenas retiradas do dorama fica claro a estratégia de desenvolvimento econômico nacional de Chung Hee. Um dos personagens está preparando para abrir uma companhia industrial farmacêutica enfatizando no dorama que deseja importar a matéria prima para produzir localmente os insumos. Apesar da visão de Chung Hee, centrada na exportação, o investimento em indústrias químicas era seu principal objetivo e que foi chamado de ‘estratégia HCI’ na época. A cena abaixo traduz o cartaz para: "1980 - Encontro Empresarial Comemorativo da Fundação Local com Cidadãos".

Cena onde aparece um lugar aberto com mesas e cadeiras brancas, garçons passando com comida e pessoas se cumprimentando.

Com o rápido avanço da oposição e crescimento da insatisfação da população, Park Chung Hee liderou o segundo golpe militar no dia 17 de outubro de 1972, dando início ao que chamou de Restauração de Outubro (Yushin). Era o começo de mais uma ditadura militar sob o nome de Regime Yushin. Nesse período, Park suspendeu a constituição de 1963, fechou o legislativo e judiciário, garantindo total poder sem restrições para ele. A justificativa para o autogolpe, inspirado pelo Ferdinand Marcos, foi a instabilidade política-internacional e tensões entre a Coreia do Norte. Ainda na nova constitução, Park aumentou o tempo presidencial de 4 anos para 6 sem limite em reeleição e foi assim que conseguiu ficar no poder até 1979.

Em 26 de Outubro de 1979, Park Chung Hee foi assassinado repentinamente pelo seu amigo de longa data, e então chefe do KCIA, Kim Jae Gyu, em uma emboscada. Isso fez com que o autoritarianismo militar sofresse um grande choque pois com base na nova constituição, não tinha nada esclarecido sob quem poderia ser o novo presidente e nem mesmo existia um cargo maior após o posto de Presidente. O poder era todo de Park Chung Hee e sua morte trouxe muitas divisões entre os militares. A princípio quem entrou ao poder foi o então primeiro-ministro Choi Gyu Ha que demonstrou interesse em acabar com o regime Yushin de Park, juntamente com o chefe da KCIA atual (pois Kim Jae Gyu foi deposto após matar Park), Jeong Seong Hwa.

Cena onde um dos personagens está sentado com a cabeça curvada para baixo e olhos para frente ouvindo notícias de um rádio.

Nos primeiros episódios é possível ver nessa cena uma transmissão de rádio onde falava sobre os desejos do partido de oposição, do Kim Dae Jung, em acabar com o regime autoritário com o fim do governo Yushin e a criação de um sistema de eleição distrital.

Apesar da inclinação em diminuir o autoritarismo dos militares por parte do atual presidente, outros militares do alto escalão, principalmente do grupo que atuaram no golpe de 72, com medo de perder seus privilégios e poderes, não queriam o fim do regime Yushin. E foi assim, em 12 de dezembro de 1979 que Chun Doo Hwan e demais militares executaram outro golpe. Com isso, Chun foi graduado para Tenente General e assumiu o comando do KCIA em Abril de 1980, ficando praticamente sob o mesmo poder que o Presidente.

Com essa instabilidade dentro do governo, os estudantes e o proletariado foram para as ruas para demandar o fim da Lei Marcial (imposta desde o Yushin) e o fim do resquícios do regime Yushin. Os protestos estavam concentrados nas grandes capitais, uma delas, Gwangju, por ser a capital, à época, da província de Cheolla do Sul, a região em que nasceu Kim Dae Jung, o principal líder da oposição.





Foto de uma senhora idosa em um protesto contra o sistema de mísseis americano Thaad numa vila rural do sul da Coreia do Sul. Ela diz: "eu odeio todos os presidentes dos EUA"

Anti-americanismo

É importante também falar no grande envolvimento que os Estados Unidos teve na Coreia do Sul desde o final da Segunda Guerra Mundial e também durante a Guerra da Coreia, onde os EUA apoiava o sul. Desde então, o envolvimento nunca parou (assim como acontece em outros países — Iraque, Afeganistão, Vietnã). Em 1980, os Estados Unidos mantinham uma força terrestre de 40 mil homens na Coréia do Sul e tinham controle operacional sobre grande parte dos militares sul-coreanos. Antes do golpe de Chun Doo Hwan, desde o governo de Park Chung Hee, os Estados Unidos mantinham uma postura passiva com relação aos golpes militares cometidos no país. Isso se deve ao fato de que os objetivos dos Estados Unidos e dos militares normalmente era os mesmos: manter uma forte segurança nacional sob auxílio das tropas americanas, garantir as relações comerciais de importação/exportação e ajudar a Coreia do Sul a ser um exemplo de desenvolvimento capitalista, segundo a estratégia de Chung Hee. Para isso, o governo dos EUA destinava verba para treinamento de militares como também para o desenvolvimento nacional, chegando a uma verba tão grande que estimava-se ser a metade do fundo do País.

Foi por causa dos conflitos que ocorreram em maio de 1980, em Gwangju, que o anti-americanismo começou a se tornar forte sendo até hoje uma "pedra no pé" do governo americano. Documentos oficiais sugerem que os EUA tenham auxiliado as tropas de Chun Doo Hwan no massacre que aconteceu durante o golpe. Golpe esse que o embaixador dos EUA na Coreia do Sul, Gleysteen, comunicou para o Departamento do país a evitarem o termo pois os eventos decorridos não correspondiam com um golpe, já que a estrutura continuava a mesma.

Outra causa para o anti-americanismo na Coreia se deu por conta do rumor amplamente espalhado de que um porta-aviões americano (USS Coral Seal), tinha entrado no país para ajudar as tropas especiais em Gwangju. Rumor ou não, investigações confirmam o fato de que os Estados Unidos sabia do golpe que Chun daria e na repressão violenta que aguardava Gwangju no meio de maio de 1980 mas nada fez para combater o massacre. Após os acontecimentos em Gwangju, com a ditadura de Chun perdurando até 1987, diversos outros protestos aconteceram em embaixadas dos EUA no país e o espirito anti-americano foi crescendo a cada ano.





17 a 27 de Maio de 1980

Dia 17 a 19 de Maio de 1980

Foi na noite de 16 de Maio que ocorreu o último grande protesto em Gwanju que reuniu aproximadamente 30.000 estudantes e trabalhadores da cidade, de uma população de 730.000, indo contra o toque de recolher que estava em vigor. Apesar de Gwangju ser o foco, outras grandes capitais, como Seoul também reuniam milhares de pessoas nos protestos demandandam as mesmas pautas. E foi na madrugada de 17 para 18 de Maio que o governo decretou a Lei Marcial para todo o território nacional sob o pretexto de soldados infiltrados da Coreia do Norte (um falso rumor criado por Chun). Com essa medida, a lei fechou todas as universidades e escolas, proibou protestos e reprimiu a imprensa. Era mais um golpe militar acontecendo no país.

Foi no dia 18 de Maio, em um protesto pacífico de cerca de 600 estudantes , frente a Universidade Nacional Chonnam, que protestavam contra seu fechamento, que a violencia começou. Primeiro, os militares tentavam interromper o protesto quando os estudantes começaram a jogar pedras nas tropas. Militares revidaram com tremenda violência policial e humilhação de todos os tipos. Logo viram que permanecer com protestos pacíficos não adiantaria em nada contra a crueldade dos militares. Assim, começaram a reunir todo tipo de arma que conseguiam: pedaços de maderia, barras de ferro, facas de cozinha. Começaram então a produzir coqueteis molotov e a erguer barricadas.

-- Na foto: imagens reais dos protestos sangrentos do dia 20 e 21 em Gwangju

Fotos reais dos protestos em Gwangju. Milhares de pessoas reunidas na avenida principal, com barricadas e ônibus.

Dia 20 e 21 de Maio de 1980

Mais pessoas começaram a se reunir para os protestos depois de conseguirem armamentos improvisados. Na noite de 20 de maio cerca de 200.000 pessoas estavam nas ruas principais de Gwangju, a maior parte do centro da cidade estava tomada pelos cidadãos com exceção de algumas vias de transporte e o Salão Provincial (prefeitura à época)

Desde o começo da manhã do dia 20 milhares de pessoas começaram a se reunir no centro da cidade após a notícia de um corpo encontrado próximo a área. Cidadãos de todas as idades estavam se reunindo ao mesmo tempo mais tropas estavam sendo enviadas para deter os protestos. Na tarde deste dia militares começaram a reprimir os protestos com lança-chamas queimando até a morte alguns cidadãos.

Na mesma noite, com mais pessoas juntando-se aos protestos criou-se um sentimento de comunidade entre todos os que estavam na luta. Todos sentiam pela a vida do outro. Pessoas ajudavam como podia a comprar alimentos e materiais para o protesto. Um dos atos mais simbólicos foram os taxistas, que de forma espontânea, uniram-se aos protestos e mobilizaram-se (cerca de 200 táxis e alguns ônibus) para ficar na linha de frente com seus carros, mesmo sabendo que não sairiam ilesos de lá.

Colagem de duas fotos. A primeira mostra um cena do dorama onde pessoas estão protestando em cima de ônibus e a segunda foto, imagem real dos protestos com a mesma dinâmica.

Nessa cena do dorama é possível desenhar um paralelo em relação aos acontecimentos reais daquele dia com base na foto ao lado. Testemunhas afirmam que os militares teriam começado atirar logo após o cântico do hino nacional coreano e quando os motoristas estavam próximos as barricadas dos soldados. Taxistas foram pegos e espancados, seus carros destruídos; foi utilizado também o gás CS, o mesmo usado na Guerra do Vietnã. A população enfurecida pelos ataques contra os taxistas incendiaram duas sedes financeiras de duas grandes emissoras televisivas (KBS, MBC) por não estar transmitindo o terror que militares estavam fazendo na região.

Foi após a marcha de táxis que tudo começou a se intensificar e os protestos começaram a tomar controle da região metropolitana da cidade, invadindo estações que estavam sendo comandadas pelo exército. Para retomar o controle, tropas foram condicionadas a atirar na população. Foi nesse evento que ocorreram as primeiras mortes.

No dia 21 os protestos aumentaram e a população conseguiu roubar armas veículos blindados da Kia Motors (na época Asia Motors) dentro de um complexo industrial da companhia na região, com o objetivo de invadir o Salão Provincial. Além disso eles conseguiram invadir um armazém de instrumentos bélicos conseguindo armas, detonadores, granadas para os cidadãos. Nesse confronto, mais mortes aconteceram. (oficialmente 54 de acordo com governo sul-coreano anos depois)

Depois dos fortes confrontos entre a população e os militares, as tropas foram ordenadas a se retirarem e assim o povo conseguiu invadir o salão, deixando Gwangju sob controle popular.

Texto explicativo abaixo.

Nessa cena do dorama é possível ver os estudantes distribuindo armamento para a população, convocando todos a participarem dos protestos. Também nota-se, pela legenda, a indignação de um dos estudantes quando questionado sobre o uso das armas, e se o protesto pacífico não seria a melhor opção. Em resposta, ele diz: "Eles estão massacrando os cidadãos, porque devemos nos manter imaculados/pacíficos? É legítimo soldados atirarem em pessoas inocentes? Mas é ilegal revidarmos?"

Dia 22 a 27 de Maio de 1980

Após a tomada de Gwangju pela população, formou-se o que chamamos de comuna. Onde a população se organizou política e economicamente de forma independente atendendo a diversas demandas pós Massacre. Uma delas eram as cozinhas comunitárias, organizadas principalmente por mulheres donas e funcionárias de mercearias, para alimentar a milícia e os militantes. Os estudantes também tinham um papel importante em vários aspectos: distribuição de comida, controle do trânsito, organização de funerais, entre outros. Como mencionado acima, tinha também a milícia responsável pela proteção nos limites da cidade como também no centro e de algumas funções operacionais e estratégicas de distribuição de insumos. Existiam outras forças na comuna além das citadas mas não quero me estender.

Durante esse período houveram tentativas de negociações com os militares tanto pela parte da milícia como pela parte de políticos de oposição e líderes religiosos para acabar com a repressão violenta na cidade. As negociações não tiveram sucesso e a milícia e alguns manifestantes resolveram continuar com os protestos até o fim. Durante esse período as fronteiras da cidade estavam ocupadas por militares que atiravam em qualquer veículo e pessoas que tentasse atravessar, matando pelo menos 65 civis.

No dia 27 de Maio, pela manhã, já programado para os militares retomarem toda a cidade aconteceu o último confronto entre as forças militares e manifestantes no Salão Provincial e outros locais, resultando num número oficial de 26 mortos.

"Os militares têm esperado pacientemente desde a evacuação da cidade em 21 de maio. Prometemos aos representantes dos cidadãos que não voltaríamos, desde que certas condições fossem respeitadas. Elas não foram respeitadas. Voltar para a cidade tornou-se inevitável, pois a escória da sociedade e os elementos criminosos se organizaram como o chamado “exército dos cidadãos”. Eles infringiram a lei. O exército completou sua missão com sucesso. Cidadãos, venham à frente. A ordem foi restaurada." - Comunicado emitido pelo Comandante da Lei Marcial às 05:25 do dia 27 de Maio de 1980.





-- Na foto: 1) Cena do dorama onde os corpos dos mortos eram colocados. 2) Foto real em um dos ginásios que eram usados para funerais das pessoas mortas durante os ataques. Tirada pelo jornalista Jurgen Hinzpeter.

Caixões de militantes mortos cobertos com a bandeira sul-coreana, velas e fores ao lado.

Efeito pós Massacre de Gwangju

Quantidade de mortos

A quantidade de mortos no massacre é ainda algo discutido e pesquisado até hoje por intelectuais e historiadores coreanos. Apesar do governo ter oficializado um total de 238 mortes, muitos não acreditam que tenham este sido o número real de mortes diante das características já apresentadas e pela forte repressão que os protestos foram acometidos.

Alguns falam em pelo menos 400 e 500 mortos outros já dizem terem sidos mais de 1000 mortes durante o massacre. A incerteza se dá pela falta de sobreviventes durante os ataques, a omissão de relatórios e corpos por parte dos militares, e pela quantidade de pessoas desaparecidas em que os corpos não foram encontrados e/ou não foram contabilizados como parte dos protestos.

Protestos pós Gwangju

Chun Doo Hwan assumiu efetivamente o governo como presidente em Setembro de 1980 e governou até 1987. Durante esse período de 7 anos, outros protestos aconteceram exigindo direitos democráticos e eleições plurais e justas. Um deles foi o levante de junho de 1987 bastante conhecido pelo assassinato do estudante Lee Han Yeol. A Coreia do Sul só foi conseguir efetivamente a redemocratização com as eleições daquele ano.

Apesar da Quinta República ter sido iniciada em 1987 resquícios da ditadura ainda eram percebidos no governo sucessor com o presidente Roh Tae Woo, ele que também participou do golpe de 1979. Até a outra reeleição em que Kim Young Sam foi eleito, em 1993, outras manifestações também foram acontecendo contra a brutalidade policial da época. Algumas mortes eclodiram em grandes protestos contra Roh Tae Woo, sendo elas, morte de dois estudantes que ateram fogo em seus próprios corpos. Essas mortes incendiaram o desejo de vários estudantes a lutar por seus diretos em 1991.





-- Na foto: Roh Tae Woo. (esq.) e Chun Doo Hwan (dir.) durante o “julgamento do século”

Advogados ao redor dos dois militares usando ternos pretos. Roh Tae Woo e Chun Doo Hwan com uniforme de penitenciária de cor azul claro.

Audiência e Punições sobre Maio de 1980

Uma das pautas para que os protestos ainda continuassem acontecendo era a falta de punição para os militares responsáveis pelo massacre de Gwangju. Muitos manifestantes exigiam que a Suprema Corte criasse uma investigação e julgassem os responsáveis pelo massacre. Isso só foi acontecer em 1995 com a criação da Lei Especial do Movimento de Democratização de 18 de Maio, que permitiu o julgamento dos responsáveis pelo golpe de dezembro de 1979 e pelo massacre de Gwangju, apesar do tempo limite para ações legais ter expirado.

Foi em 1996 que o julgamento chegou ao fim com a condenação de 8 políticos militares incluindo Chun Doo Hwan e Roh Tae Woo. Acusados de alta traição e responsáveis pelo massacre de Gwangju, suas punições foram oficializadas em 1997 com a sentença de morte. A sentença acabou sendo alterada para prisão perpétua para Chun Doo Hwan e para Roh Tae Woo e demais militares. Apesar disso, todos receberam perdão em nome do Presidente da época, Kim Young Sam, que foi aconselhado pelo Kim Dae Jung.

Resumidamente, mesmo após anos e anos de protestos e milhares de mortes, nenhum dos militares recebeu efetivamente uma punição justa pelo massacre. Todos foram perdoados e apenas tiveram que pagar multas. Não é de agora que a justiça coreana não pune criminosos de guerra e faz pouco caso com políticos assassinos enquanto prendem pessoas que fumam maconha quase todo mês. Nada de novo no capitalismo.





Posters do drama Sandglass, e filmes A Petal e Taxi Driver.

Outras adaptações

Sandglass (1995)

Quem nunca ouviu falar de Sandglass certamente não está familiarizado com o mundo dos doramas. Sandglass é o quarto dorama mais visto da história da tv coreana. Lançado entre janeiro e fevereiro de 1995, foi um dos pioneiros em cenas icônicas que agora é considerado essencial nos dramas de hoje em dia. Mais do que isso, o desenvolvimento da história dos 3 protagonistas: Park Tae Soo, Kang Woo Suk e Yoon Hye Rin são tão bem escritos que a quarta posição é totalmente merecida. Não fosse por isso, Sandglass está marcado na história audiovisual da Coreia por centralizar o enredo do drama em questões sociais e políticas entre a década de 70 até começo de 90. Assim, a história mostra o governo de Park Chung Hee até o governo de Roh Tae Woo passando pela história do movimento de Gwangju.

A Petal (꽃잎, 1996)

Último filme do diretor Jung Sun Woo lançado no dia 5 de abril de 1996. Apenas 16 anos depois do levante. Conta a história de uma garota que viveu os acontecimentos de Gwangju em 1980 e seus traumas após perder a mãe no massacre. O filme gerou críticas e revolta na população sobre as mortes em Gwangju que fez com que o governo revelasse documentos inéditos desclassificados do caso.

Eu assisti o filme e confesso que não esperava nada do que encontrei nele. É um filme muito forte onde aparece diversos traumas e violência cometida contra a jovem protagonista e foi difícil de assistir. Eu não recomendo o filme pois eu acho que não deveria ter cenas fortes como as que tem protagonizado por uma atriz mirim de 16 anos.

Após pesquisar outros filmes e doramas da época, percebi que todos tem uma forte apelação sexual e violenta e muito disso se dá por conta da liberação do cinema após a censura da ditadura. Assim, muitos produtores e diretores se inclinavam a demonstrar cenas fortes na televisão como motivo de celebração da arte e o fim da censura.

Taxi Driver (택시운전사, 2017)

É um dos grandes sucessos do ator Song Kang Ho e conta uma história real de amizade entre um motorista de táxi e um jornalista estrangeiro durante os protestos de Gwangju. Jornalista que já citei acima, o mesmo quem tirou a foto dos caixões no ginásio.

Após assistir o filme, consegui entender muita coisa sobre o levante de Gwangju e creio que se você ainda não assistiu, depois de ler o blog, vai gostar bastante do filme. Ele mostra na visão do taxista como eles foram importantes para os estudantes e militantes da linha de frente.

1987: When The Days Come

Apesar de não estar ligado diretamente com os acontecimentos de Gwangju, o ambiente continua o mesmo. O filme retrata sobre os protestos de junho de 1987 após a notícia da morte de um estudante via tortura pelo governo, chamado Park Jong Cheol. É interessante de assistir para entender como a Coreia estava politicamente durante o final do governo de Chun Doo Hwan. Apesar do filme não focar nos protestos, e sim na história de alguns personagens, é possível ver algumas cenas reais nos créditos do filme.

Mais algumas: Peppermint Candy (박하사탕, 1999), The Old Garden (오래된 정원, 2006), May 18 (화려한 휴가, 2007) e 26 Years (26년, 2012).





-- Na foto: vítima dos tiros de militares, a estudante de ensino médio Park Geum Hi foi morta após ter ido ao hospital doar sangue para ajudar os militantes dos protestos.

Foto de um familiar de Park Geum Hi chorando no retrato da estudante acima de seu caixão.

Referências

KIM, Byung Kook; VOGEL, Ezra (ed.). The Park Chung Hee Era: The Transformation of South Korea. Londres: Harvard University Press, 2013. 744 p. ISBN 9780674072312.

SEOL , Kap. The US Didn’t Bring Freedom to South Korea: Its People Did. Jacobin, [s. l.], 25 jun. 2020. Disponível em: https://www.jacobinmag.com/2020/06/gwangju-uprising-korean-war-seventieth-anniversary. Acesso em: 29 set. 2021.

SHORROCK, Tim. The Gwangju Uprising and American Hypocrisy: One Reporter’s Quest for Truth and Justice in Korea. The Nation, [s. l.], 5 jun. 2015. Disponível em: https://www.thenation.com/article/world/kwangju-uprising-and-american-hypocrisy-one-reporters-quest-truth-and-justice-korea/. Acesso em: 29 set. 2021.

VANVOLKENBURG, Matt. Gusts Of Popular Feeling. [S. l.], 2005. Disponível em: https://populargusts.blogspot.com/. Acesso em: 1 out. 2021. 

KIM, Yong Cheol. The Shadow of the Gwangju Uprising in the Democratization of Korean Politics. New Political Science, [s. l.], v. 25, n. 2, p. 225-240, 2010. DOI 10.1080/07393140307193. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/07393140307193. Acesso em: 1 out. 2021.

Katsiaficas, Georgy. "Neoliberalism and the Gwangju uprising." 민주주의와 인권 6.2 (2006): 191-229.





Finalização

Foi um blog que não queria ter me estendido tanto mas gostei do resultado e da experiência em aprender um pouco mais da história da Coreia. Não falei muito sobre Youth of May, mas considero ele um ótimo drama, caso você, que tenha lido, já tenha assistido ele, notou diversas semelhanças com a realidade e creio que isso foi bem repassado nas telas assim como as demais adaptações acima.

Para quem terminou esse extenso artigo, meu obrigada e espero que tenha aprendido mais sobre o levante de Gwangju. Deixe seu comentário caso queira. Até a próxima.





Bônus

Uma parte bônus para quem quiser aprender um pouco mais sobre o levante. Coloquei esse bônus pois não teria como falar de tudo num único blog. Até porque, eu inclusive, não aprendi tudo que esse período histórico teve. Foram muitos conflitos sociais e políticos nessa época de transição "democrática". Mas abaixo deixo mais contribuições.

Fotos explicadas abaixo.

1a. Foto de Chun Doo Hwan na cerimônia de posse como Presidente em Setembro de 1980. Ele eventualmente conseguiu o poder presidencial depois de muita pressão por parte dele e de seus militares e da falta de apoio que Choi Gyu Ha tinha naquele momento. Militares no geral sentiam que Chun tinha mais força política que Gyu Ha, no fim, ele acabou cedendo.

2a. Foto de Chun Doo Hwan e o embaixador norte americano Gleysteen. Esse senhor foi responsável por tantas tragédias no país que se fosse contar tudo daria outro blog. Não ele, como os EUA inteiro né. Gleysteen, apesar de não estar inclinado com atitude mais violenta de Doo Hwan não via alternativas a não ser aceitar seu novo governo para atender as estratégias políticas e de território do país assassino que os EUA é. O Presidente Jimmy Carter estava preocupado com a situação coreana sair de controle assim como foi na Guerra do Vietnã em que os EUA foram derrotados. Carter não queria que isso acontecesse na Coreia e por isso fortaleceu a base militar americana e coreana no país.

Fotos explicadas abaixo.

Um trecho interessante de uma parte do dorama enquanto acontecia os ataques do dia 20 e 21 de Maio. Em que o irmão de Hee Tae reitera a afirmação dita pelo seu colega quando falou que eram os soldados norte coreanos atirando nos cidadãos. Ele responde: “É nosso próprio exército”. Pois foi esse o rumor que Chun mandou espelhar como forma de justificar sua repressão violenta na cidade. A desculpa era que o país devia proteger sua nação contra ataques norte coreanos. Só que isso foi uma baita mentira criada por ele para causar essa sensação duvidosa na população no começo da repressão. Isso acabou não convencendo ninguém e Gleysteen e Carter sabiam que, naquele momento, uma ameaça norte coreana era a ameaça menos provável de se acontecer, isso foi comprovado por diversos relatórios que eram emitidos sobre a situação na fronteira entre os países.

Fotos explicadas abaixo.

Imagens coloridas durante o levante, muito similar a cena que aparece no dorama, não? Uma pessoa erguendo a bandeira do país em cima do ônibus durante a marcha de taxistas no dia 20. Marcha que foi o ponto de virada para os protestos ganharem força e apoio popular de quase toda a população da cidade. Se procurarem mais fotos desse dia vai ver que a quantidade de pessoas nas ruas era IMENSA e vale ressaltar que Gwangju, nesse momento pós decreto da Lei Marcial em todo território nacional, era a única cidade em que a população estavam lutando pela liberdade. Seoul, a capital do país, os movimentos estudantis decidiram não realizar protestos depois da Lei. Assim, nos dias 18/19/20/21 até onde eu sei, só Gwangju estava resistindo as repressões.

Fotos explicadas abaixo.

Uma imagem bastante emblemática, forte e revoltante. É uma história que acabou sendo o ponto chave para pessoas irem as ruas lutarem. Está vendo um carrinho de mão bem no meio desse grupo de pessoas, cheio de bandeiras sul coreanas? Se repararem bem vai perceber uma perna saindo dele logo abaixo. Sim, é um corpo de uma pessoa morta durante os ataques que aconteceram nas estações de trem, muito provavelmente. O corpo foi encontrado e colocado dentro do carrinho. Não só um corpo, mas são dois corpos de pessoas mortas que estão aí dentro. Esses corpos acabaram por serem uma símbolo representativo de luta do povo de Gwangju e de toda violência que estava acontecendo na cidade. A notícia desses corpos circulou entre a população que por conta disso conseguiu reunir milhares de pessoas para protestar no dia 20, taxistas inclusos. Foram por conta dessas duas vítimas encontradas mortas na rua que a raiva veio a tona e a luta de toda Gwangju, unida com um só propósito, começou.

Fotos: Robin Moyer

Foto de uma pessoa com capacete e uma arma com a mira apontada para fora em meio ao vidro quebrado da parte da frente de um ônibus

Foto de 3 pessoas com roupas casuais, capacetes de proteção, armas apontadas, mascaras brancas no rosto, atrás de troncos grandes de árvores.

Algumas fotos da milícia armada de Gwangju. Foi um dos grupos mais importantes para que a raiva da população fosse canalizada para luta contra os militares. Qualquer um que era capaz de usar uma arma, podia ser encarregado de proteger determinados locais. Isso era decidido entre a população. Aqueles que já tinham ido no exército e principalmente homens jovens dispostos a aprender a atirar.

Foto: Robin Moyer (colorizada)

Foto explicada abaixo.

A foto acima é muito interessante de ser analisada pois creio que seja uma das poucas fotos tiradas nos ginásios, onde os caixões era colocados, que é possível ver o andar de cima. A maioria das fotos são de caixões porém com poucas pessoas em volta. A foto acima mostra ser diferente. Centenas de pessoas em luto por conhecidos e desconhecidos. Por ela, é possível até deduzir que muito mais pessoas estavam dentro do ginásio prestando condolências. Assim como em Youth of May mostra, os caixões eram revestidos com a bandeira da Coreia justamente para simbolizar o motivo pelo qual a pessoa se foi. Lutando pela democracia.

Mais um ponto interessante na foto. Volte mais atrás e busque a foto de Park Geum Hi, guarde ela e agora veja esta foto novamente. Percebeu algo? Repare nas 3 meninas com uniforme escolares a frente de um dos caixões. Note que este caixão é um dos da extremidade do ginásio, assim como na foto anterior de Park Geum Hi. Com base nessas duas fotos, é possível cogitar a hipótese de que seja o caixão da estudante que morreu após doar sangue. Youth of May também detalha muito bem o medo que o massacre causou para estudantes do ensino médio e fundamental com a personagem Lee Jin A e sua amiga. A história de Park Geum Hi foi detalhada pelo Mark em seu blog Gusts of Popular Feeling (em referências).

Nessa foto é possível ver o Cemitério Nacional de 18 de Maio, inaugurado em 1997 onde encontra-se os corpos das vítimas do massacre de Gwangju e outros ativistas que também lutaram pela democracia, os corpos foram exumados e recolados neste novo local. Durante o levante os corpos eram enterrados no cemitério chamado Mangwol-dong. Park Geum Hi e Lee Han Yeol, por exemplo, estão enterrados no local. É comum as pessoas visitarem no dia 18 de Maio de todo ano em homenagem as vítimas. Lá encontra-se também uma parede dedicada a cada vítima reconhecida no massacre bem como datas e momentos históricos daquele mês.





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